terça-feira, novembro 22

e que a minha loucura seja perdoada

"e agora, José?
a festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta?
e agora, José?
está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho,
já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode,
a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia
e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou,
e agora, José?
e agora, José?
sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca,
sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio – e agora?
com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta;
quer morrer no mar, mas o mar secou;
quer ir para Minas, Minas não há mais.
José, e agora?
se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense,
se você dormisse, se você cansasse, se você morresse...
mas você não morre,
você é duro, José!
sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia,
sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?"



Um poema que nunca consegui ler impassível. Sem me deixar derrubar, atropelar, arrebatar.
Bate um desespero, uma urgência, um grito sufocado no peito. Uma vontade colossal de se pôr em marcha, de se entregar ao vento, de viver a vida.
Porque é preciso que se grite. É preciso que se chore. É preciso que se viva.
Qualquer passo bailado que signifique a vida. A entrega.
É que às vezes, quando invade aquela sensação, aquela angústia de andar, andar, e nunca sair do lugar. Sem aviso, a alma definha. Murcha, mesmo.
Eu não estou assim, não. Murchando, acinzentada. Pelo contrário.
Ando até bem contente, bem esperançosa, bem flutuante.
É que a angústia, às vezes, vira para mim quase um passatempo. E rodopiamos, e nos divertimos juntas. Assim, leves, como quem ignora o ritmo implacável da vida.
Acho que aprendi a recebê-la e aceitá-la como uma companheira. A quem se aceita, se recebe e se deixa ir quando é preciso.
De repente, parece que acordei crescida.
E também de repente me parece ressoar ao longe, quase como som que não se quer ouvir, as pequenas-grandes palavras jogadas ao vento e trazidas a mim...
para onde?

Texto: "José", de Carlos Drummond de Andrade
Imagem:
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