sexta-feira, abril 28

de príncipes e fadas



Tarde de chuva. Pingos grossos na janela regem a melodia agradável e melancólica que domina certas tardes de frio e chuva. O céu nublado economiza a luz do dia e obriga a acender as luzes. O choque da artificialidade.
Clara, sentada, amuada, sem ter o que fazer. As bonecas já perderam a graça, também entediadas com o dia inóspito, foram-se todas a dormir. Jogos, sozinha não se joga. Os amigos, cada qual em sua casa, o cinza e a chuva que não lhes deixam sair, brincar e viver. A TV? Clara resiste. Já conhece um pouco da vida, apesar de bem pequena. Já sabe, por exemplo, que a TV, uma vez ligada, será a rainha dominante do dia cinzento. Soberana até a noite, quem sabe durante o jantar e até a hora de dormir. Povoará seus sonhos, se a distração for muita. Clara não quer, porque seu mundo é maior. Clara quer mais. Quer sonhar.
Percorre o apartamento, olhos atentos, coração ansioso. Busca idéias. Busca possibilidades. Quer fazer o seu dia, quer um novo tempo e um novo espaço. Esse já não lhe agrada, já não lhe basta. Clara, apesar de bem pequena, já se sabe maior do que seu corpo de criança. Já se sabe maior que os limites das paredes do apartamento. Não se conforma com a idéia de permanecer atrelada a ele, sem remédio.
O armário dos livros. Território desconhecido, assustador e fascinante. Com o pai em casa, as portas do escritório estão sempre fechadas, impeditivas, autoritárias. Mas agora, a liberdade. Quem sabe? Lombadas azuis, amarelas, vermelhas, qualquer colorido já é um bom começo. Em um dia cinzento, então, o poder das cores é infinito.
Percorre as prateleiras, uma a uma. O coração bate acelerado, como que antevendo a grandeza do milagre. O encontro, a magia. Clara persiste, aguarda, confiante. Algumas vezes, para se chegar ao milagre, é preciso ter paciência.
Ali. O encontro, afinal. Sereno, grandioso e brando como todo milagre. Inevitável. Abandonado, na última prateleira, próximo ao chão, lugar nada óbvio para um baú de sonhos aguardando ser aberto. “As Reinações de Narizinho”. O título brilha, absoluto, poderoso.
Clara toca o livro, solene, cuidadosa. É matéria preciosa, é seu príncipe encantado, montado nas patas brancas das páginas delicadas, galopante, chegando pronto a salvá-la da torre do tédio, das garras implacáveis da rainha má. Senta-se no sofá, cerimoniosa, importante. O momento é único, memorável, especial. Clara sabe disso. Aconchega o livro mágico em seu colo, com cuidado, com carinho. Quase como quem ampara um bebê que acaba de chegar ao mundo, necessitado de afago e proteção, mas carregando consigo todo um mundo pleno de esperança.
Abrem-se mutuamente. O livro para a menina e a menina para o livro. As palavras escapam dançantes das páginas impressas, traçam um bailado lúdico entrelaçando-se nos cabelos cacheados da menina curiosa, deitam-se umas por cima das outras, brincam, riem, tropeçam. Clara, fascinada, maravilhada. Acaba de descobrir. Acaba de realizar aquela que será, provavelmente, sua maior descoberta, dali até o fim de seus dias. A vida é matéria de sonho. Agora, Clara sabe. Sabe com os olhos, sabe com as mãos, sabe com o coração.
E que sabedoria infinita! Aprendeu a ser criança. Aprendeu a doar-se ao sonho, a embarcar sem medo na aventura infinita da palavra escrita. Aprendeu a viver sem deixar-se dominar pelas amarras do possível.
Clara rodopia, cantarola, suspira. Já não existem limites, já não sobram barreiras. Todos os mundos são possíveis, todas as vidas ao alcance das mãos. Os olhares são infinitos, não existem mais janelas, paredes, chuva, cinza, tédio.
Mas a vida, sempre e sempre, acontece. E também para a menina curiosa e seus passos pequeninos de criança sonhadora. Clara cresce. Cresce caminhando, entre sonhos e letras, uns dias sobre os outros, no atropelo da vida. Cresce e ganha responsabilidades, deveres, cotidianos.
Mas Clara, ainda, é Clara. É criança curiosa, é a mesma menina de cabelos cacheados e mãos ávidas. Quando toca a palavra escrita, vive a magia de agarrar o tempo e impedi-lo de passar. Vive os passos e as maravilhas daquela mesma tarde, cinzenta, chuvosa. E colorida. Volta a ser a mesma Clara miúda e sedenta que, em uma tarde chuvosa de inverno, aprendeu a derrubar com as próprias mãos as barreiras da realidade.
Hoje, é a pequena Ana, a quem a pequena-grande Clara deu a luz e a vida, quem percorre esperançosa os espaços vazios do apartamento por vezes cinzento em busca de novos mundos e novas vidas. São suas as mãozinhas pequeninas e brancas que tocam ávidas as lombadas coloridas da prateleira. É seu o coraçãozinho ansioso e doce que encontrará, na última prateleira, esquecido próximo ao chão, em um lugar nada óbvio para um baú de sonhos, a vida.
E, depois de Ana, outras Claras, e outras Anas. E outras. E outras.
A palavra escrita permanece, aguardando novas e novas gerações, novas e novas mãozinhas macias, sedentas e curiosas que lhes venham despertar e que lhes convidem a bailar animadamente suas aventuras e sonhos.
A palavra escrita. A matéria prima do sonho. E da vida. É permitir-se e entregar-se, e a magia acontece.
Basta que se tenha olhos para ver.
Clara tem. Ana também.


* crônica minha, originalmente escrita para publicação no dia do livro (23 de abril)

quarta-feira, abril 19

menininhas do meu coração

O tempo passa, sim. Mesmo que a gente não se dê conta, mesmo que a gente não queira, mesmo que a gente se esconda. Ele nos encontra, e passa. E passa.
Estão aí as pimentinhas, fazendo um ano logo, logo. Há exatos onze meses atrás, num 19 de maio exuberante e ensolarado, chegavam ao mundo duas criaturas delicadas, frágeis e pequeninas. Vinham trazendo uma nova vida, um novo mundo.
E eu? Lembro-me como se fosse hoje dos nove meses de barriga deliciosa, de cada horinha do parto, do êxtase de tê-las nos braços, da loucura dos primeiros dias em casa, do conhecimento mútuo pouco a pouco, de cada momento de descoberta das minhas meninas. De cada sorriso, de cada lágrima, de cada som e da cada cheiro.
E cada vez mais me dou conta do grande barato que é ser mãe. Da poesia de ver dois pequeninos pedaços de você ganhando vida própria, criando suas vontades, virando 'pessoinhas' diante de seus olhos. Da alegria obscena de ter a felicidade ao alcance das mãos, possível e palpável. Da vontade incontida de eternizar pequenos momentos, brincadeiras no final de tarde, sonoras e sinceras gargalhadas pelas coisas mais simples, sorrisos, toques, olhares.
Minhas pimentinhas fazem de mim uma pessoa mais apaixonada. Por elas, pela maternidade, pelo meu amor, pela vida. Por mim mesma.
Esse é o presente que elas me dão, dia a dia.
E eu não consigo imaginar outro melhor.

terça-feira, abril 18

corra, Renata, corra



As 24 horas de cada dia às vezes ficam poucas pra tanta coisa que a gente tem pra fazer.
É casa, é marido, é trabalho, é filho, é lista, é amigo, é blog, é msn, é crise existencial, é supermercado, é feira...
Acontece que as pendências são muitas e eu, uma só. É uma batalha desleal.
Mesmo assim, eu acabo vencendo. De um jeito ou de outro.
Eu? Não me entrego fácil, não.

segunda-feira, abril 17

e agora, José?



O que fazer nesses momentos em que a gente parece ter adentrado um universo paralelo, que não compreende nem aceita, em que tudo parece ter ficado de cabeça para baixo, e a lógica usual não funciona mais, nem resolve mais impasse algum?
O que fazer?
Estou precisando urgentemente descobrir.
Urgente-urgentíssimo.

quinta-feira, abril 13

mistura fina



Tem certos dias em que eu penso. Não em minha gente, mas em mim mesma. Em tudo o que quis, fiz ou vivi. No que já fui e em tudo o que deixei de ser.
Tento compreender os caminhos que me trouxeram aqui, a viver o que vivo hoje. A ser o que sou, essa mistura caótica entre o que quis, o que pude e o que sonhei. Bate tudo bem batidinho e dá nisso: alguém meio entre caminhos, mas vivendo e feliz. Simplesmente.
Entre caminhos, porque desde muito cedo escolhi coisas na minha vida. E, por ter escolhido cedo, muitas delas foram mudando ao longo dos anos. Mas, também por ter escolhido cedo, eram vitais e verdadeiras, por isso jamais despareceram por completo. Coexistem comigo, ainda hoje, apesar de terem sido, por vezes, esquecidas, repensadas ou deixadas de lado, mesmo. Nem sempre sem dor. Aliás, na maioria das vezes, com. Alguma, pelo menos.
O fato é que, bem ou mal, tropeçando ali, caindo aqui e levantando mais adiante, eu cheguei a algum lugar. Não a um destino final, porque a vida é matéria de continuidade. Onde há fim não há vida.
Mas a algum lugar eu cheguei, e me dou conta, sorrindo meio sem perceber, que tenho a meu redor um cantinho de aconchego. Um cantinho com espaço para sonhos, embora acolha também uma realidade da qual não posso pensar em abrir mão. Um cantinho onde convivem harmoniosamente a menina tímida e insegura que pisava a passos confusos uma estrada florida e inconstante e a mulher apaixonada, contraditória e intensa que vive seus dias entre abismos e paragens. Tudo, e sempre, sem perder a doçura. E o sonho.
Fico feliz de saber que, de repente, posso ser tudo o que sou. Que não preciso escolher. Talvez.
Que posso viver assim, lá e cá. Que posso ser tudo, e mais um pouco. Que a vida pode ter todas as cores e nuances que eu desejar que tenha. Que eu posso ir, voltar, refazer e começar a sonhar tudo de novo.
Tem certos dias em que a gente respira aliviado. A tempestade passa, chega a calmaria e a gente simplesmente respira. Que é a beleza grande da vida que a gente não pode perder.
Tem certos dias em que a gente simplesmente compreende o começo, meio e fim das coisas. E tudo parece que faz sentido.
Tem dias que a gente acorda e vê que a vida é bonita demais.
Só isso. A gente olha e vê.

segunda-feira, abril 10



... pára o mundo que eu quero descer!!

Imagem: http://depositodocalvin.blogspot.com

quarta-feira, abril 5

uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel



o mundo era grande
eu era pequena
ainda assim, o mundo cabia todinho dentro de mim
e eu era feliz
a meu modo, mas era feliz

o mundo apequenou-se
eu cresci
convivemos bem, pacificamente
(pelo menos na maioria das vezes)
o mundo e eu, eu e o mundo
e eu sou feliz
a meu modo, mas sou feliz

cheia de saudades
mas feliz

Imagem: um dia de carnaval, São Sebastião, 1984

segunda-feira, abril 3



Sim. É o que dizem.
Depois da tempestade, sempre vem a bonança.
Pois então, pode vir. Eu já estou esperando.
Sentada. Por via das dúvidas.